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quinta-feira, 12 de abril de 2007

Escrivinha... o quê?

Entre outras coisas, sou jornalista. Gosto de escrever, tenho essa necessidade. Mas não sou ficionista. A realidade é bastante rica e já fornece matéria-prima suficiente para ser abordada aqui. No entanto, também farei referências a obras de ficção, seja porque acabei de conhecê-las ou (re)conhecê-las, para ilustrar, traçar paralelos, e mostrar o que mudou na nossa sociedade - ou não. Não precisa ser um clássico, nem um best-seller, e menos (muito menos) ainda um blockbuster, basta que ache que vale a pena comentar (ou detonar...). Lembrando que sou jornalista, não crítica literária ou de cinema.

Mas, já que estamos falando sobre realidade e ficção, há algum tempo fiz uma resenha sobre um livro que acabou servindo de título para este blog, e que reúne os ingredientes principais que serão nele tratados: jornalismo (no caso, o rádio), relações humanas, histórias & estórias.



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Ambientado nos anos 50, em Lima, no Peru, “Tia Júlia e o Escrevinhador”, de Mario Vargas Llosa, é uma auto-biografia romanceada do autor, que conta sua trajetória amorosa e profissional de um modo bastante original, intercalando capítulos biográficos com capítulos das radionovelas escritas pelo “escrevinhador” que dá nome à obra.

O livro conta a história de Mario, jornalista e estudante de direito, aspirante a escritor e supervisor dos noticiosos de uma das rádios da família dos Genaros, destinada ao público de maior nível financeiro e cultural. Mario precisa estar atento aos exageros de um assistente amante do sensacionalismo e ainda arrumar tempo para escrever. No decorrer da história, Mario conhece o escritor de radionovelas Pedro Camacho, um verdadeiro fenômeno para criar personagens e enredos, contratado para trabalhar na outra rádio da família dos Genaros, voltada para o público de classe mais baixa e com programação bastante popular. O autor, através de seu personagem, passa a oportunizar ao leitor a história do rádio na época, em especial quanto às radionovelas.
Antes do escritor – ou escrevinhador – Pedro Camacho ser contratado para revolucionar a programação da rádio de seus patrões, as radionovelas eram encomendadas de uma verdadeira fábrica de radionovelas cubana, que vendia estórias como montados em linha de produção, e que por ser soberana na área, cobrava preços altos. Pedro Camacho, boliviano descrito como um homenzinho estranho, pequenino, dono de uma personalidade que caminha no limite da excentricidade e que alterna momentos de simpatia com outros de extrema superioridade, não cobra apenas barato. Também gera um aumento estupendo na renda da rádio, graças à publicidade que investe cada vez mais no horário de suas radionovelas, de olho na audiência que cresce cada vez mais. A audiência é atraída pelas estórias feitas para serem familiares ao público alvo, com locais reais, utilizados após séria pesquisa realizada com a ajuda de Mario.

As estórias de Pedro Camacho possuem invariavelmente um herói cinqüentão, de testa ampla, nariz aquilino e bondade de espírito, e citam sempre algum personagem ou hábito ridículo que seja de um argentino. Mais tarde conclui-se que esta implicância deve-se ao fato de sua esposa não lhe ser fiel e ser argentina.

Verdadeiros roteiros radiofônicos e de interpretação, os capítulos que contam as estórias criadas por Camacho são enriquecidos pela narrativa de Mario, que vez ou outra visita a emissora e conta ao leitor como são os bastidores de uma rádio: quem é e o que faz o sonoplasta, como são fisicamente os atores que emprestam suas vozes de veludo no rádio, nem sempre correspondendo – e na maioria das vezes não corresponde – à expectativa dos ouvintes. Também descreve o assédio das fãs (pois eram mulheres, em maioria) que visitavam a rádio para não só ouvir mas também ver seus ídolos, e o comportamento da equipe, tanto dos atores como autores.

Tudo acontece em grande harmonia até que Mario – também chamado de Marito ou Varguinhas –, com dezoito anos, envolve-se com uma tia divorciada recém chegada da Bolívia. Júlia na verdade não é sua tia, e sim irmã da esposa de seu tio, porém na época isto não tinha a menor importância. Importava que era divorciada, era sua tia, tinha trinta e dois anos, ou seja, era quatorze anos mais velha e seria um ultraje para a família.

A partir daí o livro torna-se um diário das peripécias pelas quais Mario tem que passar para casar com sua tia, solução que encontrou para tornar o relacionamento respeitável e, principalmente, não ser impedido por seu rigoroso pai, que voa dos Estados Unidos com sua mãe para o Peru, de viver com Júlia. Para isso conta com a ajuda de seus funcionários na rádio, de uma prima e de um amigo de infância, e juntos fazem uma verdadeira maratona, que também deixa perceber a consciência de que a corrupção é possível e que todos são passíveis de exercer ou necessitar dela, pois considerando que Mario era menor de idade para casar e não tinha autorização nem era emancipado, tentam convencer vários prefeitos, à base de papo e dinheiro, a casarem os pombinhos sem que fossem legalmente autorizados a casar.

Entrementes, Pedro Camacho começa a confundir personagens e radionovelas, misturá-los completamente. No início, todos pensam tratar-se de mais uma cartada brilhante do escrevinhador, que talvez estivesse testando um outro tipo de narrativa a qual pessoas de pouca percepção não reconheciam, mas que resultariam com certeza na junção de todas as radionovelas em uma só. Infelizmente Camacho, ele próprio reconhece, está sofrendo de um nível de estafa que o faz misturar tudo indiscriminadamente e sem qualquer possibilidade de salvação e muito menos de premeditação.

Com o casamento realizado e a tempestade familiar apaziguada, Mario volta de sua maratona à rádio neste momento de caos, e é incumbido de montar, às pressas, com as antigas radionovelas cubanas arquivadas, uma nova programação, já que as estórias de Camacho tornam-se inviáveis e os horários têm de ser preenchidos, sob pena dos anunciantes abandonarem totalmente a emissora. Esta será a primeira das muitas novas tarefas que Mario passa a somar à de jornalista para manter seu casamento e a promessa feita ao pai de continuar seus estudos – embora não tenha continuado fazendo exatamente o que o pai gostaria -, e também para patrocinar sua tão sonhada viagem à Europa, onde desenvolveria seu talento para escrever. Acaba realmente indo com Júlia, com quem fica casado, para surpresa de todos, por oito anos. Volta então ao Peru, casa-se com Patrícia, sua prima, o que desta vez já não escandaliza sua família, e reencontra seus ex-ajudantes da época em que trabalhava com noticiosos, e também Pedro Camacho, decadente e que sequer o reconhece.


Tia Júlia e o Escrevinhador é, portanto, um relato histórico não só dos costumes da sociedade peruana, mas principalmente do funcionamento da programação das rádios na época, em especial dos noticiosos e radionovelas, de como trabalhavam as suas equipes, da importância da audiência e por conseqüência da publicidade, e da repercussão de toda esse trabalho entre as pessoas.

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