Quem é o anencéfalo?
Faz tempo que venho perdendo o respeito pela nossa corte de ministros. E, quando o ministro Cézar Peluzo diz que não está convencido de que o feto anencéfalo está condenado à morte com o argumento de que "todos o somos" (ou seja, todos vamos morrer um dia, qual o problema de nascer morto? Diga isso a qualquer mãe...) e que "o sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana" (portanto qual o problema de passar 9 meses pensando em um filho que não nascerá, criando traumas que ficarão para sempre prejudicando inclusive gestações futuras) eu realmente preciso concordar: é possível alguém sem cérebro viver e até mesmo chegar a ministro.
Na coluna "Chega de torturar mulheres", da jornalista Eliane Brum, ela informa que na quarta-feira o STF voltará a votar o tema e faz a comparação necessária da imposição de angústia de tal forma a uma espécie de tortura. Não tenho filhos, nem sei se os terei. Mas sei que a notícia e a expectativa de ter um filho, se nem sempre são possíveis de manterem-se na alegria, não é possível que, fadadas à morte, precisem ser prolongadas. No documentário que coproduziu, "Uma História Severina", é possível entender bem a dimensão do caso. Severina existe e mesmo forte não deixa de sofrer como qualquer mulher. Mas sofre ainda mais pela sua origem e dificuldades em lutar contra uma burocracia criada por quem nunca vivenciou semelhante dor. Creio ainda em uma legislação sem hipocrisia que descriminalize o aborto como forma de evitar práticas clandestinas e mortes desnecessárias. Sei que o tema é polêmico, mas se em alguns casos é possível ainda pensar em discutir, neste, não poderia ser.
Trecho da coluna da jornalista Eliane Brum (leia aqui o texto completo):
Depois de quase oito anos, o Supremo Tribunal Federal deverá votar nesta quarta-feira (11) uma ação que decidirá se as mulheres grávidas de um feto anencéfalo (malformação incompatível com a vida) poderão interromper a gestação sem necessidade de autorização judicial. Hoje, elas são obrigadas a peregrinar pela Justiça, em geral por meses. Em alguns casos, o juiz dá autorização, em outros não, numa zona ambígua que depende das crenças pessoais de quem julga. Às vezes, quando o juiz dá a licença, já demorou tanto tempo, ocorreram tantas idas e vindas no processo, que o bebê nasceu e morreu. Em parte porque, ao descobrir que uma mulher pediu a interrupção da gestação anencefálica, grupos religiosos usam a estratégia de atrasar o processo com recursos como, por exemplo, um “habeas-corpus para o feto”. A ação, que já é lenta, tarda ainda mais, até que não exista mais o que julgar. Na prática, como todos sabemos (com exceção dos hipócritas, talvez), as mulheres de classe média resolvem a questão buscando clínicas clandestinas de aborto, para não ter de se submeter à demora e às dificuldades de um processo judicial no Brasil. Quem procura a Justiça são as mulheres pobres, que dependem da rede pública de saúde para interromper uma gravidez. Nesta quarta-feira, o STF terá a chance de estancar – com atraso – uma violação sistemática dos direitos humanos causada por um vácuo na lei, que além de desamparar as brasileiras mais frágeis em um momento dificílimo da vida, as condena à tortura.